Mesmo com regras já impostas, ainda é necessário um olhar jurídico inovador para a adequação da legislação ao novo cenário do mundo digital.
É só abrir os principais sites, jornais ou revistas do país que você irá se deparar com notícias sobre criptoativos, blockchain ou alguém que comprou por milhões um NFT.
Esse novo formato financeiro, que é totalmente digital, veio para ficar. Por isso, é muito importante conhecer mais a respeito e entender se esse modelo é seguro.
Também chamados de ativos digitais, essas unidades de valor, como a criptomoeda, por exemplo, têm suas operações executadas exclusivamente em meio digital através da internet. “Elas surgiram com a intenção de permitir que indivíduos ou empresas efetuem pagamentos ou transferências financeiras eletrônicas diretamente uns aos outros, sem a necessidade da intermediação de uma instituição financeira oficial”, esclarece Armando S. Mesquita Neto, advogado especialista em direito penal econômico e sócio da A. Mesquita Advogados, em São Paulo.
Atualmente, o mercado de criptoativos apresenta-se como uma alternativa sedutora às formas tradicionais de investimento devido às baixas taxas de juros e de tarifas frente à uma economia estagnada.
E muitas pessoas acreditam que a única diferença entre as moedas é que uma é exclusivamente digital e a outra física. Mas não é bem assim. O dólar americano, o real e o euro são moedas fiduciárias ou tradicionais expressas em notas e impressas pelos governos, cujo valor depende da política econômica e da força da economia de um país.
As moedas oficiais têm caráter indispensável, ou seja, não podem ser recusadas como forma de pagamento. Além da obrigatoriedade, outra importante diferença que deve ser ressaltada é que uma moeda oficial mantém seu valor com base na força econômica de seu pais. “O dólar, por exemplo, a maioria das commodities, do petróleo ao ouro, é negociada na moeda americana. E isso dá ao dólar o chamado ‘status de reserva mundial’, sendo que a maioria dos bancos centrais dos países detém quantidades significativas dessa moeda. O que se repete também com o euro”, conta Mesquita.
As criptomoedas, por outro lado, são privadas, não são obrigatórias e se movem de forma autônoma às regras dos governos. Além disso, como não estão vinculadas a nenhuma economia mundial, sofrem grandes oscilações em um curto espaço de tempo em seu valor de face. Como aconteceu recentemente com a queda no mercado de bitcoins, e que virou assunto no mundo inteiro.
Essa resposta é fácil: por meio de uma rede chamada blockchain. “De forma simples, podemos explicar a tecnologia como um livro-razão compartilhado e imutável, que facilita o processo de registro de transações e rastreamento de ativos em uma rede empresarial. Um ativo pode ser tangível (uma casa, um carro, dinheiro, terras, uma empresa) ou intangível (propriedade intelectual, patentes, direitos autorais e criação de marcas)”, afirma o especialista em direito penal econômico.
Praticamente qualquer item de valor pode ser rastreado e negociado em uma rede de blockchain, o que reduz os riscos e os custos para todos os envolvidos. Isso porque as transações realizadas na rede por meio dessa tecnologia são agrupadas e registradas em blocos. Dessa forma, cada aglomerado que é aceito na rede se conecta imediatamente ao anterior, e assim por diante, formando uma sequência ou cadeia de blocos (daí o nome blockchain).
De acordo com Mesquita, as transações em blockchain são absolutamente seguras. “A propriedade desses ativos virtuais não é verificada pela comprovação da identidade de seu detentor. Mas sim por uma senha secreta que, por meio de técnicas de criptografia, permite que as transações sejam realizadas de forma quase anônima. Isso sem que as partes tenham que revelar quaisquer informações que não desejam”, acrescenta.
E por conta de toda essa segurança, as operações são praticamente irreversíveis. Portanto, se um proprietário tentar reutilizar ativos já negociados, por exemplo, que é o chamado gasto duplo, a rede de computadores rejeita a transação imediatamente.
“Assim como nas operações financeiras tradicionais, o poder público tem o dever de fiscalizar a movimentação de valores para coibir a prática de ilícitos penais, como lavagem de dinheiro, evasão de divisas ou outras modalidades de crimes financeiros. Nesse sentido, como a transação de ativos digitais é feita de forma descentralizada, diretamente entre as partes, sem intermediação de uma instituição financeira e sem o controle estatal direto, podemos dizer que essas qualidades podem motivar pessoas interessadas em ocultar ou movimentar recursos de origem ilícita”, alerta o advogado.
Mas vale deixar bem claro que esse universo digital de criptoativos não se trata de um mundo sem regras ou fronteiras. Pelo contrário! Segundo Mesquita, a ausência direta do estado já é um avanço para a liberdade econômica de pessoas e até de países. Afinal de contas, a circulação de valores não está vinculada a critérios determinados pelas grandes instituições financeiras. “Nesse sentido, o ideal seria que os governos e órgãos reguladores sofisticassem as suas formas de prevenção de crimes digitais, mas sem retirar a autonomia de cada indivíduo na utilização desses recursos”, comenta.
Há numerosas moedas digitais disponíveis para compra e venda em todo o mundo. Contudo, o que mais se destaca atualmente sem dúvida é o NFT, que se sobressai pelo seu conceito altamente inovador na forma como um bem digital é criado, além de seu caráter único e comercializado.
“Os NFTs são tokens não fungíveis que podem ser utilizados para representar a propriedade de um artigo único, como obras de arte, música, colecionáveis e até imóveis. Os bens registrados no token só podem ter um proprietário oficial de cada vez. Além disso, são protegidos pela cadeia de blockchain Ethereum e ninguém pode modificar o registo de propriedade, copiar ou colar um novo NFT existente”, diz o especialista em direito penal econômico.
Mesquita comenta que essa tecnologia é um avanço sem precedentes para a comercialização de forma segura e lícita de obras de artes, músicas, itens colecionáveis e outros bens imóveis e móveis. “O NFT permite que um artista localizado em uma região remota, por exemplo, venda a sua obra de arte, ou a sua música, para uma galeria em Nova York sem intermediadores ou a necessidade de deslocamento físico”, diz.
É importante deixar claro que, apesar de não termos ainda uma legislação específica sobre o tema, a jurisprudência penal atual possui leis a respeito de transações ilegais de ativos digitais. Isso porque, as mesmas regras que se aplicam às moedas oficiais, ao ouro e às obras de arte, também são aplicadas às criptomoedas.
Um exemplo é o artigo 1º da Lei nº 9.613/98, que define o crime de lavagem de dinheiro. Essa norma também envolve transações de criptoativos e NFTs que sejam feitas com o objetivo de simular ou ocultar bens originados direta ou indiretamente por um ato ilícito antecedente.
E, assim como esses outros ativos, as unidades de valor digitais também possuem características que as tornam atrativas para movimentações ilegais. Atualmente, no Brasil, a própria Receita Federal e o Banco Central por meio da Unidade de Inteligência Financeira (UIF), que é o antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), possui essa autonomia técnica e operacional para controlar as transações em criptoativos.
Diante de tantas inovações tecnológicas que permitem deslocar bens valiosos e altos valores por todo o mundo em questão de segundos, surge um alerta quanto à eficácia dos meios de controle frente a esse novo cenário. “Por isso, caberá aos governos, aos órgãos de fiscalização e controle, ao sistema financeiro, às corretoras de criptoativos (exchanges), bem como aos seus usuários criarem programas antilavagem e de compliance para garantir o bom uso dessa fantástica e inovadora tecnologia. E isso só poderá ser feito com um olhar jurídico também inovador para a adequação de uma legislação antiga ao novo cenário do mundo digital”, aponta Mesquita.
Cabe a nós, então, aguardar os próximos capítulos dessa revolução tecnológica que veio para ficar.